sábado, 14 de fevereiro de 2009

[A Rainha Desvairada de Renorah]

- Não sei por que dizem que sou desvairada. Não sou desvairada. Certo que por vezes me perco em pensamentos, beirando em alguns momentos os mais terríveis desvairios. Sim, eu desvairio. Mas seria eu, por desvairar, uma desvairada? Não. Penso que não.
- E como tens certeza de que pensas, minha Rainha?
- Sei apenas que penso, fato consumado. Penso por vezes até demais. E vejo, também. Sei que não vejo as coisas que todos vêem, e por isto me chamam de desvairada. Digo, claro que posso enxergar, não posso?
- Não sei, minha Rainha. Podes?
- Oras, se te vejo, meu caro Gato...
- E como tens certeza mesmo de que estou aqui?
- E como tu, meu caro Gato, não és capaz de notar a sutil diferença entre o que digo e o que dizes? Digo que te enxergo, e ponto. Em momento algum digo que estás aqui ou mesmo que existes.
Neste momento o Gato de Sapatilhas de Balé pousou o violino que dedilhava distraído sobre o divã, dando uma profunda tragada em seu cachimbo de hortelã.
- É, tens razão.
Com uma gargalhada sonora, a Rainha Desvairada jogou os longos cabelos dourados para trás.
- Gato, não me respondas assim, com esta frase de encerrar qualquer questão. Criei-te pois estou exausta de discussões tolas e sem fundamento. Deves servir ao que foste proposto.
- Nada me foi proposto, minha Rainha. Criaste-me sem minha permissão, ou sem mesmo pedir a minha opinião sobre o fato de vir a ser criado.
- Estás te rebelando?
- Faço apenas o que queres que eu faça, minha Rainha. Se te respondi com uma frase de encerrar questões, foi porque assim o quiseste. Tomando o cachimbo de hortelã das mãos do Gato de Sapatilhas de Balé, a Rainha começou a andar em círculos pelo quarto da torre mais alta do castelo de Renorah.
- Oras, caríssimo gato! E por que razão iria eu querer que me respondesses encerrando a questão?
- Talvez porque não fosse a questão que quissesses discutir, minha Rainha...
Um momento de silêncio se fez, enquanto a Rainha Desvairada de Renorah tragava o cachimbo de hortelã.
- E qual questão quereria eu discutir?
Com um gesto ousado, o Gato de Sapatilhas de Balé tirou o cachimbo das mãos da Rainha, espalhando-se preguiçosamente no divã enquanto dava uma tragada.
- Oras, minha cara Rainha... Qual é teu assunto favorito?
- Sabes bem que não tenho um único assunto favorito, querido Gato.
Olhando profundamente nos olhos azuis da Rainha, o Gato sorriu enquanto soltava a fumaça de seus pulmões.
- Sim, tens.
Jogando-se sobre o mesmo divã, a Rainha Desvairada riu-se novamente, jogando os cabelos dourados para trás.
- Ah, sim... Claro... Pois está claro para todos que tu me conheces muito melhor do que eu mesma...
- Escuso o fato de que, uma vez que sou criação de tua mente desvairada, eu te conhecer melhor do que ti mesma seria paradoxal...
- Ahá! - com um salto que assustou a si mesma, a Rainha olhou desafiadora para o Gato - Vês? Foges do assunto como o diabo da cruz! Tens medo de admitir que eu não tenho um assunto favorito?
Deixando o cachimbo de lado e inclinando-se na direção da Rainha, o Gato franziu as sombrancelhas.
- Teu assunto favorito, caríssima Rainha... - deixando a frase em suspenso, o Gato sorriu - É justamente não ter assunto algum.
O silêncio pairou no quarto. Por vários minutos a Rainha permaneceu estática e boquiaberta. Por fim, ela sentou-se novamente no divã, tragando o cachimbo.
- Toque a música de Nicolas, sim? E desta vez alto, para que se possa ouvir de Manskaoosin.
E, iluminado apenas pela luz da lua cheia que entrava pela janela do quarto da torre mais alta do castelo do reino das colossais muralhas de vidro, o Gato de Sapatilhas de Balé pôs-se a tocar.

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