terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

[Back to Black]

Rascunhei uma poesia. Acabei de fazê-lo. Parece-me boa, embora ainda inacabada.
A primeira boa poesia em mais de dois anos. A última se perdeu como Licor em Taça de Champanhe.

Não vou postá-la aqui, não ao menos enquanto não tiver certeza de que é boa.

Mas há algo em escrever poesias que me preocupa, embora me satisfaça: nunca escrevi poesias estando feliz.

Mas, talvez, seja apenas impressão minha.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

[Mudanças em Renorah]

O Gato de Sapatilhas de Balé permanecia ali, sentado, inalterável, sem parecer querer interagir com o mundo ao redor.
A Rainha Desvairada de Renorah brincava com uma bolinha de borracha, atirando-a mil vezes na parede, completamente enfastiada.
- Toca-me uma música, Gato.
O Gato permaneceu parado. Sentar-se a encarar a parede à sua frente parecia-lhe uma tarefa por si só interessante demais para que desejasse fazer outra coisa.
Sentando-se na beira da cama e deixando que a bolinha de borracha quicasse perdida no chão do quarto mais alto da torre mais alta do castelo ao centro de Renorah, a Rainha Desvairada desabafou:
- Estou entediada - disse, procurando a atenção de seu fiel conselheiro.
Com um bocejo seguido pela espreguiçada mais felina que o Gato de Sapatilhas de Balé pôde dar, ele virou-se para a Rainha.
- Que desejas, milady?
A Rainha se levantou e caminhou até a janela.
- Algo diferente, meu caro Gato. Cansei-me da mesmice.
Acendendo seu cachimbo de hortelã enquanto se aproximava da janela, o Gato resmungou entre os dentes:
- Sim, minha Rainha, sei a que se refere... - e, com um longo trago em seu cachimbo, o Gato suspirou.
A Rainha pôs-se de costas para a janela, encarando o grande espelho na parede oposta.
- Não suporto mais esta imagem, Gato.
Apoiando os cotovelos na janela, o Gato tragou outra vez o cachimbo de hortelã.
- Não agüento mais este quarto. Nem esta torre. Nem este castelo. Ou este reino.
- Ou este Gato... - o Gato completou, suspirando e olhando para algum ponto perdido das Colossais Muralhas de Vidro do Reino de Renorah.
Um silêncio se fez no quarto da torre mais alta do castelo.
- Ou esta Rainha. - a Rainha completou, passando as mãos nos longos cabelos dourados.
O primeiro tom de vermelho inundou o quarto, anunciando o início do pôr-do-sol por detrás das Muralhas de Vidro.
- E o que pretendes, minha Rainha?
- Quero novas cores. - a Rainha respondeu.
Lentamente, a Rainha se despiu do manto vermelho.
O laranja fez-se presente no quarto como segundo passo em direção ao final do dia.
Animando-se, o Gato pousou o cachimbo de hortelã no beiral da janela e correu para um baú no canto do quarto.
- O que me diz deste manto? - o Gato perguntou, exibindo um manto azul.
- Sem mantos. - a Rainha respondeu, enfática.
O Gato voltou para o baú, perdendo-se entre as inúmeras cores que apareciam à superfície.
- Quero novas formas. - a Rainha disse, desabotoando o longo vestido laranja.
O amarelo invadiu o quarto com rapidez, ofuscando os olhos azuis da Rainha.
Vindo do fundo do baú, o Gato trazia-lhe uma casaca cor-de-rosa.
- Dizem os sábios, Majestade, que o cor-de-rosa é uma cor deveras feminina, e ficará muito bem em Vossa Senhoria.
Com um aceno, a Rainha recusou. O Gato voltou a mergulhar no baú.
- Quero novas visões. - abrindo o espartilho amarelo, a Rainha parecia determinada.
Atenuando a vibração das luzes, o verde tomou espaço nas paredes brancas do quarto.
- E branco, minha Senhora, o que pensas? Branco traz paz, iluminação, tranqüilidade...
- Brancos refletem, nunca produzem, querido Gato. - a Rainha respondeu - E quero novos momentos - acrescentou, tirando as meias verdes.
Anunciando a tranqüilidade de uma nova noite, o azul refletiu nas roupas brancas que o Gato ainda exibia. E, mais uma vez, o Gato mergulhou em meio às cores.
Despindo-se por fim de suas ceroulas azuis, a Rainha observou-se nua à frente do espelho.
O Gato emergiu com um sorriso extremamente felino do fundo do baú.
- O que me sugeres, amigo Gato?
O último tom de violeta refletiu na pele muito clara da Rainha.
- Assim estás perfeita. - disse o Gato, fechando o baú.
Colocando em seu próprio rosto um sorriso, a Rainha tragou o cachimbo de hortelã e, levando o Gato de Sapatilhas de Balé no colo, caminhou para a porta do quarto.

[A Janela da Torre do Castelo de Renorah]

Ah, o Reino de Renorah e suas Colossais Muralhas de Vidro...
Debruçada na janela de seu quarto na torre mais alta do castelo milimetricamente posicionado ao centro de Renorah, a Rainha Desvairada suspirou. Andava solitária desde a manhã em que seu conselheiro, o Gato de Sapatilhas de Balé, desaparecera porta afora e nunca mais voltara.
A Rainha Desvairada observava as casas construídas ao redor do castelo. Pareciam minúsculas àquela distância. Refletidas nas retinas de seus olhos extremamente azuis, as casas pareciam guardar segredos aos quais a Rainha jamais teria acesso. Não que ela não pudesse, num rompante de lucidez, mandar escreverem uma medida que obrigasse todos os seus milhares de súditos entregarem os segredos de suas casas logo abaixo dela, no saguão principal do castelo.
Mas ela simplesmente jamais o faria. Podia ser desvairada, absolutista, rainha elevada à condição divina, mas jamais seria maquiavélica. Isso iria contra seus princípios, se é que ainda os tinha.
A Rainha deu um leve sorriso ao lembrar de seu Gato de Sapatilhas de Balé, tão fiel conselheiro, a lhe dizer como numa visão: "E virá o dia, minha Rainha, em que teus princípios e certezas já não terão a menor importância diante de ti."
Sim. Podia ser, a Rainha sabia. Esforçando-se um pouco além, poderia quase ver a si mesma ordenando seus súditos em uma fila que percorreria toda a extensão das Colossais Muralhas de Vidro, obrigando-os a abrir a seu conhecimento todos os mais profundos segredos de suas casas.
Ajeitando seus longos cabelos dourados, a Rainha deixou estes pensamentos se esvaírem. Não havia motivos para pensar no futuro, ela sabia. Cantarolando uma canção infantil sobre ruas e pedrinhas coloridas, ela decidiu voltar suas preocupações ao sumiço de seu Gato de Sapatilhas de Balé. Por onde andaria aquele gato e seu violino? Faziam-lhe muita falta, tanto um quanto o outro. O gato para que pudesse falar, e o violino para que pudesse ouvir.
O primeiro tom de vermelho a cobrir a cidade denunciaram o início do pôr-do-sol atrás das Colossais Muralhas de Vidro. A Rainha pôs-se em pé solenemente, aumentando aos poucos o som de sua cantiga.
Quando o último tom de violeta despediu-se da janela em que a Rainha se encontrava, ela cessou a canção. Ah, gato danado! Será que nunca mais vai voltar?
O som do violino tocando a Música de Nicolas às suas costas deu-lhe a resposta que procurava. Com um sorriso, a Rainha Desvairada de Renorah fechou a janela.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

[Comunicado Extraordinário no Reino de Renorah]

Aos oitenta e nove dias do vigésimo primeiro ano da era de Sol, a Rainha Desvairada do Reino de Renorah vem a público anunciar o desaparecimento de seu Conselheiro Real, o Gato de Sapatilhas de Balé. Qualquer informação que possa levar ao encontro do Conselheiro será recompensada com 500 mil Applausus, a moeda corrente do Reino de Renorah. As informações devem ser enviadas ao último tom púrpura do pôr-do-sol para a janela do quarto da torre mais alta do castelo de mármore ao centro da capital do reino das Colossais Muralhas de Vidro.

Atenciosamente,

A Rainha Desvairada de Renorah

sábado, 14 de fevereiro de 2009

[A Rainha Desvairada de Renorah]

- Não sei por que dizem que sou desvairada. Não sou desvairada. Certo que por vezes me perco em pensamentos, beirando em alguns momentos os mais terríveis desvairios. Sim, eu desvairio. Mas seria eu, por desvairar, uma desvairada? Não. Penso que não.
- E como tens certeza de que pensas, minha Rainha?
- Sei apenas que penso, fato consumado. Penso por vezes até demais. E vejo, também. Sei que não vejo as coisas que todos vêem, e por isto me chamam de desvairada. Digo, claro que posso enxergar, não posso?
- Não sei, minha Rainha. Podes?
- Oras, se te vejo, meu caro Gato...
- E como tens certeza mesmo de que estou aqui?
- E como tu, meu caro Gato, não és capaz de notar a sutil diferença entre o que digo e o que dizes? Digo que te enxergo, e ponto. Em momento algum digo que estás aqui ou mesmo que existes.
Neste momento o Gato de Sapatilhas de Balé pousou o violino que dedilhava distraído sobre o divã, dando uma profunda tragada em seu cachimbo de hortelã.
- É, tens razão.
Com uma gargalhada sonora, a Rainha Desvairada jogou os longos cabelos dourados para trás.
- Gato, não me respondas assim, com esta frase de encerrar qualquer questão. Criei-te pois estou exausta de discussões tolas e sem fundamento. Deves servir ao que foste proposto.
- Nada me foi proposto, minha Rainha. Criaste-me sem minha permissão, ou sem mesmo pedir a minha opinião sobre o fato de vir a ser criado.
- Estás te rebelando?
- Faço apenas o que queres que eu faça, minha Rainha. Se te respondi com uma frase de encerrar questões, foi porque assim o quiseste. Tomando o cachimbo de hortelã das mãos do Gato de Sapatilhas de Balé, a Rainha começou a andar em círculos pelo quarto da torre mais alta do castelo de Renorah.
- Oras, caríssimo gato! E por que razão iria eu querer que me respondesses encerrando a questão?
- Talvez porque não fosse a questão que quissesses discutir, minha Rainha...
Um momento de silêncio se fez, enquanto a Rainha Desvairada de Renorah tragava o cachimbo de hortelã.
- E qual questão quereria eu discutir?
Com um gesto ousado, o Gato de Sapatilhas de Balé tirou o cachimbo das mãos da Rainha, espalhando-se preguiçosamente no divã enquanto dava uma tragada.
- Oras, minha cara Rainha... Qual é teu assunto favorito?
- Sabes bem que não tenho um único assunto favorito, querido Gato.
Olhando profundamente nos olhos azuis da Rainha, o Gato sorriu enquanto soltava a fumaça de seus pulmões.
- Sim, tens.
Jogando-se sobre o mesmo divã, a Rainha Desvairada riu-se novamente, jogando os cabelos dourados para trás.
- Ah, sim... Claro... Pois está claro para todos que tu me conheces muito melhor do que eu mesma...
- Escuso o fato de que, uma vez que sou criação de tua mente desvairada, eu te conhecer melhor do que ti mesma seria paradoxal...
- Ahá! - com um salto que assustou a si mesma, a Rainha olhou desafiadora para o Gato - Vês? Foges do assunto como o diabo da cruz! Tens medo de admitir que eu não tenho um assunto favorito?
Deixando o cachimbo de lado e inclinando-se na direção da Rainha, o Gato franziu as sombrancelhas.
- Teu assunto favorito, caríssima Rainha... - deixando a frase em suspenso, o Gato sorriu - É justamente não ter assunto algum.
O silêncio pairou no quarto. Por vários minutos a Rainha permaneceu estática e boquiaberta. Por fim, ela sentou-se novamente no divã, tragando o cachimbo.
- Toque a música de Nicolas, sim? E desta vez alto, para que se possa ouvir de Manskaoosin.
E, iluminado apenas pela luz da lua cheia que entrava pela janela do quarto da torre mais alta do castelo do reino das colossais muralhas de vidro, o Gato de Sapatilhas de Balé pôs-se a tocar.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

[Bem-vindos a Renorah]

O pôr-do-sol em Renorah, o reino das colossais muralhas de vidro, era em absoluto um dos mais maravilhosos espetáculos que se poderia ver sobre a Terra.
Os raios do sol, batendo angularmente nas muralhas de vidro, eram refratados em todos os milhares de tons perdidos entre as sete cores do arco-íris. Uma a uma, as cores iam invadindo a cidade, colorindo as ruas e pintando as casas de paredes e telhados extremamente brancos.
E então alcançavam o castelo. Era o maior e mais magnífico castelo que os olhos humanos seriam capazes de enxergar. Construído havia muitas eras, o castelo de mármore se erguia imponente no centro matemático da cidade.
E era ali, no alto da torre mais alta do castelo, de onde se podia ter a melhor visão daquele pôr-do-sol, que se encontrava recostada na janela a Rainha Desvairada.
Com seus longos e rebeldes cabelos dourados soltos ao vento, a Rainha observava tranqüila o tom de azul que no momento cobria sua janela. Ao seu lado estava seu único e fiel companheiro, o Gato de Sapatilha de Balé. Ele tocava baixinho em seu violino O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky.
A música se encerrou no momento em que o último tom de violeta deixou a janela do quarto. A Rainha se voltou para o Gato, sentando-se a seu lado no grande leito.
- Mais algum pedido, minha Rainha?
Sorrindo, a Rainha olhou para um ponto não especificado na parede.
- Toque a música de Nicolas...
Obediente, o Gato pôs-se a tocar.