sábado, 27 de junho de 2009

[Analista de Papel ou Sobre a Morte]

É necessário falar sobre a morte.
Não adianta evitar, não importa quão dolorido seja o assunto. É necessário falar.

Prepare-se: este é mais um daqueles posts de desabafo, de idéias (com acento, me recuso a aceitar a reforma ortográfica) sem futuro, de momentos de silêncio. Como algo escrito de mim para mim. Portanto convido a quem não quiser acompanhá-lo que visite outro endereço, navegue na internet ou vá ouvir uma música do Michael Jackson.

Não, a morte do Michael Jackson não é o motivo da escolha deste tema. Eu nunca fui fã, e confesso que há alguns anos tinha verdadeiro ódio do Rei do Pop. Coisa totalmente passageira, e reconheço hoje que ele era talentoso e sua decadência e morte foi uma grande perda para o mundo musical.
Mas também confesso que toda a cobertura e as homenagens na mídia me incentivaram a escrever sobre o que há tempos eu deveria ter escrito.

Hoje é madrugada do dia 27 de junho de 2009. Há quase três meses, no dia 29 de março, eu pela primeira vez sentia na pele o que é de fato a morte.
Desde muito pequena - talvez menor do que a maioria das pessoas - eu sabia que as pessoas morrem. Meu avô materno morreu de leucemia quando eu tinha 2 anos, e eu desde então sabia que nunca mais iria vê-lo. Dois anos depois, foi a vez da minha bisavó paterna ir para o misterioso lugar de onde as pessoas não voltam.

Mas depois disso, salvo por uma ou outra experiência de conhecidos que morreram, eu passei por 16 anos de calmaria. E, mesmo após perder meu avô paterno no início deste ano, foi apenas dois meses depois que eu de fato descobri o que é a morte.

Eu tinha aquela avó. Era a minha avó paterna, e uma pessoa um tanto conturbada e que por vezes causava sérios atritos entre a família. Mas quis o destino que eu saísse da casa dos meus pais mais cedo do que imaginei, e que fosse morar longe deles e próximo de Maria Ignez Ribeiro Silva. Maria Ignez Ribeiro, como assinava aquela senhorinha simpática e com cara de "vovó" que disfarçava uma mulher extremamente inteligente e engajada politicamente. Aquela mulher que participara das primeiras reuniões do Partido dos Trabalhadores, que vira de perto os primeiros comícios de um sindicalista chamado Luiz que se tornaria o seu maior ídolo e precisaria de vinte anos para enfim se tornar Presidente do país que ela tanto amava.
Durante dois anos nos tornamos próximas, sempre juntas a ir aqui e ali ou a ficar em casa apenas "preguiçando" e conversando. Nos tornamos amigas, ela sempre a contar histórias sobre a família ou a vida política do Brasil, eu sempre a ouvir e a perguntar.

Até o dia em que decidi conhecer novos horizontes. Embarquei num avião com destino à Nova Zelândia, lá do outro lado do mundo. E por lá fiquei durante dez meses, telefonando sempre que possível (com menos freqüência do que deveria devido à forte surdez da qual minha avó era vítima), prometendo cartas que apenas uma vez escrevi. Afinal eu logo viria ao Brasil e poderia contar todas as novidades frente a frente, tendo a certeza de que ela entenderia tudo o que eu falasse.

Mas aí veio o dia 29 de março de 2009. No meu fuso-horário de 15 horas na frente, era em torno das 4 horas da tarde do dia 30 de março quando o telefone tocou. Era minha mãe, e a ligação estava péssima, mas a notícia que ela gritou entre chiados do outro lado pôde ser ouvida com clareza.

Foi assim que eu descobri coisas que todo mundo fala mas que a gente nunca quer levar a sério:
- Pessoas morrem sem avisar.
- Às vezes você não tem tempo de se despedir.
- Não importa quão forte seja a sua ligação com alguém, você nem sempre sente quando coisas ruins acontecem.

E também descobri que uma grande máxima não passa de mito:
- O tempo não cura a dor e nem a torna mais suportável. Ele só ensina você a pensar menos e com menor intensidade sobre assuntos que doem.

Não é que a morte do meu avô, dois meses antes, tenha sido menos sentida. Mas meu avô sempre foi uma pessoa de saúde debilitada, e que nos últimos 2 anos passava mais tempo em hospitais do que fora deles, e a cada vez que precisava voltar a ser internado a situação era pior. Chegou ao ponto, em sua última internação, de que nós da família rezávamos para que ele se fosse logo, porque vê-lo sofrer e definhar cada vez mais era dolorido demais para nós e para ele.
Não importa o quanto digam o contrário, mas estar psicologicamente preparado para uma morte faz toda a diferença.

E minha avó não. Ela não estava doente, a última vez que estivera em um hospital eu deveria ter uns 8 anos, e depois disso - exceto pela osteoporose - ela era saudável a ponto de espantar os médicos quando fazia exames de rotina.
Um dia ela caiu. Levou um tombo besta dentro de casa, mas que graças à osteoporose causou uma fratura no fêmur. Uma cirurgia para colocar pinos, ajudar o osso a se recuperar. E desta vez o destino quis que a cirurgia provocasse uma embolia pulmonar, quase um mês depois.

Foi da forma que ela sempre quis: rápido, indolor e antes que ela ficasse velha demais a ponto de depender dos outros.

As mudanças que isto causou em mim foram tantas, tão repentinas e profundas que ainda não pude parar para analisar os danos. Aos poucos estou notando, dia após dia, todos os efeitos que a morte tem para quem fica.

E falar sobre isto é o primeiro passo na busca por mim mesma.

sábado, 6 de junho de 2009

[O Gato de Sapatilhas de Balé]

O Gato de Sapatilhas de Balé percorria afobado as ruas de Renorah. Saltando nos telhados quando lhe convinha, passando por entre as pernas dos transeuntes, correndo esbaforido por vielas vazias. Por onde, afinal, andaria sua Rainha?
O Gato de Sapatilhas de Balé não era capaz de se recordar com clareza quando e onde a vira pela última vez. Haviam saído da Torre, isto era fato, a Rainha Desvairada de Renorah a trajar nada além do próprio Gato em seu colo. E dias se haviam passado, durante os quais nem mesmo um único cidadão foi capaz de reconhecer naquela figura despida a sua própria Rainha.
O Gato não sabia muito bem quem fôra o primeiro a gritar "Mas não vai ali, nua em pêlo, a Rainha do Reino das Colossais Muralhas de Vidro?". Em pouco tempo, tão pouco que ao Gato já quase não era possível saber o que viera logo antes ou logo após, todos os cidadãos se encontravam ao redor daquela rainha desvairada e nua.
Os dias a seguir foram de extrema confusão para a mente felina do Gato de Sapatilhas de Balé. Não havia mais sossego no Reino de Renorah. O que a princípio fôra algo absolutamente fora dos padrões se tornara na mais nova corrente do Reino. Um após o outro, todos os cidadão de Renorah passaram a caminhar pelas ruas desprovidos de trajes.
E em algum momento, não sendo o Gato capaz de reconhecê-lo, a Rainha Desvairada e Nua de Renorah desaparecera, como que sugada pelo ar.

Exausto e sem fôlego, o Gato das Sapatilhas de Balé parou para respirar. Nunca mais encontraria sua Rainha, era certo. Com as mãos trêmulas, acendeu seu cachimbo de hortelã. Como diabos ela sumira sem deixar rastros, sem mais nem menos?
O primeiro tom de vermelho pintou as ruas de mármore branco de Renorah, anunciando o pôr-do-Sol. Sentado ao meio-fio, o Gato revia todos os seus passos, procurando uma brecha, por menor que fosse, que pudesse levá-lo à compreensão de onde estaria sua Rainha.
Tragando fundo o cachimbo de hortelã, o Gato das Sapatilhas de Balé perdia as esperanças. Renorah era o maior reino de sua região, quiçá de todo o mundo. Repleto de avenidas, ruas e vielas que cortavam o reino de ponta a ponta, tantos quanto há buracos em um bom queijo suíço.
Era certo que a Rainha não queria ser encontrada. Como bom conselheiro imaginário - e a consciência de que era isto o que de fato era, apenas imaginário, o invadiu de um repente -, o Gato de Sapatilhas de Balé era dotado da capacidade de encontrar a Rainha Desvairada e Nua de Renorah sob sua mais singela evocação. Mas que diabos estaria a Rainha a pensar para não chamá-lo agora, quando decerto mais precisaria dos conselhos daquele que para nada mais servia além de para aconselhá-la?
Quando o último tom de violeta tingiu as marmóreas ruas, o Gato elevou os olhos. Acima de todos os telhados daquele reino, acima até mesmo da Catedral da Igreja dos Discípulos do Reino, se estendia o Castelo de Renorah, construído do mais alvo e nobre mármore. E ali, na janela mais alta da torre mais alta do castelo que ficava milimetricamente ao centro de Renorah, o Reino das Colossais Muralhas de Vidro, o Gato teve a certeza, embora fosse iluminado apenas pelos últimos raios violetas a tingir o Reino, de ver longuíssimos cabelos vermelhos se agitando ao vento.
O Gato sorriu, guardou o cachimbo de hortelã no bolso e se levantou, esticando as pernas. "É... Tenho uma longa caminhada pela frente", suspirou, desaparecendo no mar dos cidadãos nus de Renorah.

domingo, 17 de maio de 2009

[O Cavaleiro Negro]

Sempre que o sol fugia entre a neblina densa do negro véu da noite - cheia de espanto eu via - altivo, sereno - galopando em majestoso corcel o cavaleiro negro da noite de minha vida.
Silenciosa e trêmula eu me aproximava do rochedo - e a doce brisa das tardinhas agrestes me trazia o suave perfume das modestas violetas e dos jasmins.
Confusa - sem bem saber o que esperava - eu caminhava perplexa, como doida sonâmbula, pelos escuros rochedos, e esperava.
Era longa e tenebrosa a espera...
Quem esperava?
Nem eu sabia - uma força mais forte que tudo me obrigava a sair ao encontro daquele delicioso mistério.
E a noite - como fantasma - descia lenta com seu manto negro, envolvendo com seu silêncio sinistro os rios, os lagos, as montanhas e os rochedos...
Em meio àquele ambiente fantástico de incertezas e receios, surgia altivo, sereno, magnífico o cavaleiro negro; envolto em horrenda capa negra, ele passeava calcando sob seu porte seguro as míseras relvas do rochedo.
E ele galopa, sereno, tranqüilo - passa cabeça erguida - lutando seguramente contra o desconhecido mal da vida, que tanto me apavora - e pisa o cadáver das paixões que desconhece.
Todos os dias, às mesmas horas, eu me dirigia para lá, onde via o cavaleiro da noite galopar num bravio corcel as amarguras que a vida lhe escrevia...
Suas amplas vestes escuras se dobravam ao frio vento das noites - e ele temia que a negra máscara viesse a lhe descobrir o rosto onde talvez a ingrata existência lhe tivesse gravado profundas cicatrizes.
Mas um dia a minha dor superou aquele que eu imaginava no desconhecido e cheia de angústia. Me atirei à estrada para ser pisada como as insignificantes relvas.
Uma brisa encantada removeu a estranha vestimenta do cavaleiro - e eu paralisei-me.
Via sair de horrenda capa a figura suave, linda, bondosa e sensível.
E, diante tanta perfeição de traços - diante tanta beleza e harmonia - cheguei a pensar que sonhava.
Mas o altivo cavaleiro me afastou tristemente de seu caminho - odiando-me por ter descoberto seus mistérios - e sumiu na imensidão da noite.
Voltei ainda muitas noites ao mesmo rochedo; nada mais existe...
Esperei longos anos inutilmente - o cavaleiro não surgia.
Hoje olho o rochedo - cheia de espanto -, vejo em tudo inconfundíveis abismos. Sinto medo e apavorada fecho duramento os olhos e fujo das recordações.
O cavaleiro negro já não existe, mas ficou gravado para sempre em minha vida e aparece sempre nas noites de meu coração.
Na adolescência da vida surge tanta fantasia que se desfazem febrilmente no entardecer da vida - para serem sepultadas definitivamente no final.
Contudo a saudade e algumas semelhanças com altivos jovens - que não passam de apaixonados disfarçados - ficarão eternamente comigo.


Trecho não datado retirado das páginas do diário de minha avó, Maria Ignez Ribeiro.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

[A Garota e a Estrela]

O mundo ficou mais vazio naquela manhã de domingo. Uma estrela pulsante de brilho e calor se apagava. Do outro lado do mundo a garota dormia tranqüila em uma madrugada de segunda.

A estrela se apagou sem aviso nos jornais. Nenhum astrônomo poderia haver prevido, nenhum fenômeno celeste anunciava sua despedida. E, todas as estrelas ofuscadas pela luz do sol, a garota não pôde notar a ausência daquela estrela. Foi somente quando a noite se fez presente e as estrelas brilharam no céu escuro que ela notou. Aquela estrela, uma das mais brilhantes, havia se apagado.

As noites se tornaram mais escuras, uma após a outra. Nem mesmo os dias eram mais tão claros quanto costumavam ser. A ausência daquela estrela se fizera tão repentina que seus olhos não haviam tido tempo de se acostumar com a escuridão. E as noites eram frias, e mesmo o sol parecia sentir a falta da estrela que iluminava a noite.

No outro lado do mundo, a garota se sentia triste. Sentada no topo de uma montanha, observando o céu, agarrando-se na vã esperança de encontrar a estrela ainda ali, saindo de seu esconderijo e rindo, brincando de esconde.

Foi quando o sabiá pousou em seu ombro. A garota tentou espantá-lo, não queria ninguém a observá-la em sua tristeza. Mas ali ele permaneceu, como ela a olhar para o céu.

Uma lágrima então rolou de sua face. E outra a seguiu. E mais uma. E tantas lágrimas a seguiram que em pouco tempo o chão ao seu redor tornara-se um imenso espelho d’água. Solenemente, o sabiá desceu de seu ombro direito para o chão.

Ela sentiu seu coração se aquecer. Com um sorriso estancando as lágrimas, a garota encontrou o que procurava. Ali, no exato ponto em que o sabiá pousava, a estrela pulsava um brilho mais forte do que nunca.


(Dedicado à minha amada avó, Maria Ignez Ribeiro, que nos deixou sem avisar em uma manhã de domingo.)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

[Back to Black]

Rascunhei uma poesia. Acabei de fazê-lo. Parece-me boa, embora ainda inacabada.
A primeira boa poesia em mais de dois anos. A última se perdeu como Licor em Taça de Champanhe.

Não vou postá-la aqui, não ao menos enquanto não tiver certeza de que é boa.

Mas há algo em escrever poesias que me preocupa, embora me satisfaça: nunca escrevi poesias estando feliz.

Mas, talvez, seja apenas impressão minha.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

[Mudanças em Renorah]

O Gato de Sapatilhas de Balé permanecia ali, sentado, inalterável, sem parecer querer interagir com o mundo ao redor.
A Rainha Desvairada de Renorah brincava com uma bolinha de borracha, atirando-a mil vezes na parede, completamente enfastiada.
- Toca-me uma música, Gato.
O Gato permaneceu parado. Sentar-se a encarar a parede à sua frente parecia-lhe uma tarefa por si só interessante demais para que desejasse fazer outra coisa.
Sentando-se na beira da cama e deixando que a bolinha de borracha quicasse perdida no chão do quarto mais alto da torre mais alta do castelo ao centro de Renorah, a Rainha Desvairada desabafou:
- Estou entediada - disse, procurando a atenção de seu fiel conselheiro.
Com um bocejo seguido pela espreguiçada mais felina que o Gato de Sapatilhas de Balé pôde dar, ele virou-se para a Rainha.
- Que desejas, milady?
A Rainha se levantou e caminhou até a janela.
- Algo diferente, meu caro Gato. Cansei-me da mesmice.
Acendendo seu cachimbo de hortelã enquanto se aproximava da janela, o Gato resmungou entre os dentes:
- Sim, minha Rainha, sei a que se refere... - e, com um longo trago em seu cachimbo, o Gato suspirou.
A Rainha pôs-se de costas para a janela, encarando o grande espelho na parede oposta.
- Não suporto mais esta imagem, Gato.
Apoiando os cotovelos na janela, o Gato tragou outra vez o cachimbo de hortelã.
- Não agüento mais este quarto. Nem esta torre. Nem este castelo. Ou este reino.
- Ou este Gato... - o Gato completou, suspirando e olhando para algum ponto perdido das Colossais Muralhas de Vidro do Reino de Renorah.
Um silêncio se fez no quarto da torre mais alta do castelo.
- Ou esta Rainha. - a Rainha completou, passando as mãos nos longos cabelos dourados.
O primeiro tom de vermelho inundou o quarto, anunciando o início do pôr-do-sol por detrás das Muralhas de Vidro.
- E o que pretendes, minha Rainha?
- Quero novas cores. - a Rainha respondeu.
Lentamente, a Rainha se despiu do manto vermelho.
O laranja fez-se presente no quarto como segundo passo em direção ao final do dia.
Animando-se, o Gato pousou o cachimbo de hortelã no beiral da janela e correu para um baú no canto do quarto.
- O que me diz deste manto? - o Gato perguntou, exibindo um manto azul.
- Sem mantos. - a Rainha respondeu, enfática.
O Gato voltou para o baú, perdendo-se entre as inúmeras cores que apareciam à superfície.
- Quero novas formas. - a Rainha disse, desabotoando o longo vestido laranja.
O amarelo invadiu o quarto com rapidez, ofuscando os olhos azuis da Rainha.
Vindo do fundo do baú, o Gato trazia-lhe uma casaca cor-de-rosa.
- Dizem os sábios, Majestade, que o cor-de-rosa é uma cor deveras feminina, e ficará muito bem em Vossa Senhoria.
Com um aceno, a Rainha recusou. O Gato voltou a mergulhar no baú.
- Quero novas visões. - abrindo o espartilho amarelo, a Rainha parecia determinada.
Atenuando a vibração das luzes, o verde tomou espaço nas paredes brancas do quarto.
- E branco, minha Senhora, o que pensas? Branco traz paz, iluminação, tranqüilidade...
- Brancos refletem, nunca produzem, querido Gato. - a Rainha respondeu - E quero novos momentos - acrescentou, tirando as meias verdes.
Anunciando a tranqüilidade de uma nova noite, o azul refletiu nas roupas brancas que o Gato ainda exibia. E, mais uma vez, o Gato mergulhou em meio às cores.
Despindo-se por fim de suas ceroulas azuis, a Rainha observou-se nua à frente do espelho.
O Gato emergiu com um sorriso extremamente felino do fundo do baú.
- O que me sugeres, amigo Gato?
O último tom de violeta refletiu na pele muito clara da Rainha.
- Assim estás perfeita. - disse o Gato, fechando o baú.
Colocando em seu próprio rosto um sorriso, a Rainha tragou o cachimbo de hortelã e, levando o Gato de Sapatilhas de Balé no colo, caminhou para a porta do quarto.

[A Janela da Torre do Castelo de Renorah]

Ah, o Reino de Renorah e suas Colossais Muralhas de Vidro...
Debruçada na janela de seu quarto na torre mais alta do castelo milimetricamente posicionado ao centro de Renorah, a Rainha Desvairada suspirou. Andava solitária desde a manhã em que seu conselheiro, o Gato de Sapatilhas de Balé, desaparecera porta afora e nunca mais voltara.
A Rainha Desvairada observava as casas construídas ao redor do castelo. Pareciam minúsculas àquela distância. Refletidas nas retinas de seus olhos extremamente azuis, as casas pareciam guardar segredos aos quais a Rainha jamais teria acesso. Não que ela não pudesse, num rompante de lucidez, mandar escreverem uma medida que obrigasse todos os seus milhares de súditos entregarem os segredos de suas casas logo abaixo dela, no saguão principal do castelo.
Mas ela simplesmente jamais o faria. Podia ser desvairada, absolutista, rainha elevada à condição divina, mas jamais seria maquiavélica. Isso iria contra seus princípios, se é que ainda os tinha.
A Rainha deu um leve sorriso ao lembrar de seu Gato de Sapatilhas de Balé, tão fiel conselheiro, a lhe dizer como numa visão: "E virá o dia, minha Rainha, em que teus princípios e certezas já não terão a menor importância diante de ti."
Sim. Podia ser, a Rainha sabia. Esforçando-se um pouco além, poderia quase ver a si mesma ordenando seus súditos em uma fila que percorreria toda a extensão das Colossais Muralhas de Vidro, obrigando-os a abrir a seu conhecimento todos os mais profundos segredos de suas casas.
Ajeitando seus longos cabelos dourados, a Rainha deixou estes pensamentos se esvaírem. Não havia motivos para pensar no futuro, ela sabia. Cantarolando uma canção infantil sobre ruas e pedrinhas coloridas, ela decidiu voltar suas preocupações ao sumiço de seu Gato de Sapatilhas de Balé. Por onde andaria aquele gato e seu violino? Faziam-lhe muita falta, tanto um quanto o outro. O gato para que pudesse falar, e o violino para que pudesse ouvir.
O primeiro tom de vermelho a cobrir a cidade denunciaram o início do pôr-do-sol atrás das Colossais Muralhas de Vidro. A Rainha pôs-se em pé solenemente, aumentando aos poucos o som de sua cantiga.
Quando o último tom de violeta despediu-se da janela em que a Rainha se encontrava, ela cessou a canção. Ah, gato danado! Será que nunca mais vai voltar?
O som do violino tocando a Música de Nicolas às suas costas deu-lhe a resposta que procurava. Com um sorriso, a Rainha Desvairada de Renorah fechou a janela.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

[Comunicado Extraordinário no Reino de Renorah]

Aos oitenta e nove dias do vigésimo primeiro ano da era de Sol, a Rainha Desvairada do Reino de Renorah vem a público anunciar o desaparecimento de seu Conselheiro Real, o Gato de Sapatilhas de Balé. Qualquer informação que possa levar ao encontro do Conselheiro será recompensada com 500 mil Applausus, a moeda corrente do Reino de Renorah. As informações devem ser enviadas ao último tom púrpura do pôr-do-sol para a janela do quarto da torre mais alta do castelo de mármore ao centro da capital do reino das Colossais Muralhas de Vidro.

Atenciosamente,

A Rainha Desvairada de Renorah

sábado, 14 de fevereiro de 2009

[A Rainha Desvairada de Renorah]

- Não sei por que dizem que sou desvairada. Não sou desvairada. Certo que por vezes me perco em pensamentos, beirando em alguns momentos os mais terríveis desvairios. Sim, eu desvairio. Mas seria eu, por desvairar, uma desvairada? Não. Penso que não.
- E como tens certeza de que pensas, minha Rainha?
- Sei apenas que penso, fato consumado. Penso por vezes até demais. E vejo, também. Sei que não vejo as coisas que todos vêem, e por isto me chamam de desvairada. Digo, claro que posso enxergar, não posso?
- Não sei, minha Rainha. Podes?
- Oras, se te vejo, meu caro Gato...
- E como tens certeza mesmo de que estou aqui?
- E como tu, meu caro Gato, não és capaz de notar a sutil diferença entre o que digo e o que dizes? Digo que te enxergo, e ponto. Em momento algum digo que estás aqui ou mesmo que existes.
Neste momento o Gato de Sapatilhas de Balé pousou o violino que dedilhava distraído sobre o divã, dando uma profunda tragada em seu cachimbo de hortelã.
- É, tens razão.
Com uma gargalhada sonora, a Rainha Desvairada jogou os longos cabelos dourados para trás.
- Gato, não me respondas assim, com esta frase de encerrar qualquer questão. Criei-te pois estou exausta de discussões tolas e sem fundamento. Deves servir ao que foste proposto.
- Nada me foi proposto, minha Rainha. Criaste-me sem minha permissão, ou sem mesmo pedir a minha opinião sobre o fato de vir a ser criado.
- Estás te rebelando?
- Faço apenas o que queres que eu faça, minha Rainha. Se te respondi com uma frase de encerrar questões, foi porque assim o quiseste. Tomando o cachimbo de hortelã das mãos do Gato de Sapatilhas de Balé, a Rainha começou a andar em círculos pelo quarto da torre mais alta do castelo de Renorah.
- Oras, caríssimo gato! E por que razão iria eu querer que me respondesses encerrando a questão?
- Talvez porque não fosse a questão que quissesses discutir, minha Rainha...
Um momento de silêncio se fez, enquanto a Rainha Desvairada de Renorah tragava o cachimbo de hortelã.
- E qual questão quereria eu discutir?
Com um gesto ousado, o Gato de Sapatilhas de Balé tirou o cachimbo das mãos da Rainha, espalhando-se preguiçosamente no divã enquanto dava uma tragada.
- Oras, minha cara Rainha... Qual é teu assunto favorito?
- Sabes bem que não tenho um único assunto favorito, querido Gato.
Olhando profundamente nos olhos azuis da Rainha, o Gato sorriu enquanto soltava a fumaça de seus pulmões.
- Sim, tens.
Jogando-se sobre o mesmo divã, a Rainha Desvairada riu-se novamente, jogando os cabelos dourados para trás.
- Ah, sim... Claro... Pois está claro para todos que tu me conheces muito melhor do que eu mesma...
- Escuso o fato de que, uma vez que sou criação de tua mente desvairada, eu te conhecer melhor do que ti mesma seria paradoxal...
- Ahá! - com um salto que assustou a si mesma, a Rainha olhou desafiadora para o Gato - Vês? Foges do assunto como o diabo da cruz! Tens medo de admitir que eu não tenho um assunto favorito?
Deixando o cachimbo de lado e inclinando-se na direção da Rainha, o Gato franziu as sombrancelhas.
- Teu assunto favorito, caríssima Rainha... - deixando a frase em suspenso, o Gato sorriu - É justamente não ter assunto algum.
O silêncio pairou no quarto. Por vários minutos a Rainha permaneceu estática e boquiaberta. Por fim, ela sentou-se novamente no divã, tragando o cachimbo.
- Toque a música de Nicolas, sim? E desta vez alto, para que se possa ouvir de Manskaoosin.
E, iluminado apenas pela luz da lua cheia que entrava pela janela do quarto da torre mais alta do castelo do reino das colossais muralhas de vidro, o Gato de Sapatilhas de Balé pôs-se a tocar.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

[Bem-vindos a Renorah]

O pôr-do-sol em Renorah, o reino das colossais muralhas de vidro, era em absoluto um dos mais maravilhosos espetáculos que se poderia ver sobre a Terra.
Os raios do sol, batendo angularmente nas muralhas de vidro, eram refratados em todos os milhares de tons perdidos entre as sete cores do arco-íris. Uma a uma, as cores iam invadindo a cidade, colorindo as ruas e pintando as casas de paredes e telhados extremamente brancos.
E então alcançavam o castelo. Era o maior e mais magnífico castelo que os olhos humanos seriam capazes de enxergar. Construído havia muitas eras, o castelo de mármore se erguia imponente no centro matemático da cidade.
E era ali, no alto da torre mais alta do castelo, de onde se podia ter a melhor visão daquele pôr-do-sol, que se encontrava recostada na janela a Rainha Desvairada.
Com seus longos e rebeldes cabelos dourados soltos ao vento, a Rainha observava tranqüila o tom de azul que no momento cobria sua janela. Ao seu lado estava seu único e fiel companheiro, o Gato de Sapatilha de Balé. Ele tocava baixinho em seu violino O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky.
A música se encerrou no momento em que o último tom de violeta deixou a janela do quarto. A Rainha se voltou para o Gato, sentando-se a seu lado no grande leito.
- Mais algum pedido, minha Rainha?
Sorrindo, a Rainha olhou para um ponto não especificado na parede.
- Toque a música de Nicolas...
Obediente, o Gato pôs-se a tocar.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

[2012]

Dizem as profecias de Nostradamus, da Bíblia, do Torá, do Alcorão, da civilização Maya, Asteca, Inca e Egípcia, o profeta Raulzito e talvez até das pedrinhas do seu quintal que o mundo um dia vai acabar.
E se este dia estivesse próximo? Digamos, não daqui a um ano ou dois, mas em três anos?
E se este dia fosse em 2012?

Por algum motivo que não se sabe explicar muito bem, várias profecias e previsões de diferentes locais e pessoas concordam que, se o mundo não vai definitivamente acabar em 2012, algo de muito sinistro ocorrerá.

Há o calendário Maya. Apesar da civilização Maya ter evaporado da face da Terra (dizem os ufólogos, levados por seres extraterrestres para outro planeta), seu calendário previa milhares de anos após sua própria extinção. Mas, ou porque isto realmente significa alguma coisa, ou porque eles tinham que parar o calendário em algum momento, fato é que o calendário termina exatamente no ano que nós, civilização cristã ocidental, passamos a chamar de 2012.

Há rumores de uma profecia de Nostradamus, embora eu não possa reamente afirmar isto, que dizia que a terceira grande guerra ocorreria sob o poder de um líder negro em uma grande nação.
Obama tomou posse hoje e seu primeiro mandato se encerra em 2012.

Há também o tal do Nibiru. Dizem mais uma vez aqueles ufólogos e os lunáticos que um grande corpo celeste se aproxima da Terra em rota de colisão, e que a NASA esconde este conhecimento para evitar pânico.
Se a NASA esconde ou não esconde, a questão é que, por algum motivo, o tal do Nibiru está previsto para se colidir com a Terra precisamente no ano de... 2012.

Há outros vários eventos que podem ser considerados sinais de que, se não é o fim do mundo que está vindo, algo de importância inimaginável e que vai mudar todos os conceitos que temos formados se aproxima a cada dia. Provavelmente para acontecerem em 2012.
São os cada vez mais freqüentes relatos de OVNIs e coisas sem explicação acontecendo ao redor do mundo.
É a tal previsão de que o Papa João Paulo II seria o último antes do surgimento das Bestas do Apocalipse.
É a terceira mensagem de Fátima, dizendo que os eventos do apocalipse começariam após a morte de Lúcia. Lúcia morreu em 2004, o mesmo ano das Tsunamis.
São tremores de terra sem explicação no Brasil.
É o aquecimento global atingindo níveis de desespero.
É o homem querendo brincar de Deus, criando espécies novas (como o Ligre), querendo recriar o Big Bang, invadindo o espaço.

Me chamem de lunática, de conspiracionista ou do que quiserem. Em 2012 nos encontramos.

"Está em qualquer profecia que o mundo se acaba um dia."

[Clichês]

"Que sei eu do que serei, eu que não sei o que penso?"

Ah... Penso tanta coisa, penso sim. Mas não posso ser tudo o que penso.
Ou posso?
Tantos no mundo pensam ser tudo o que penso que sou que não podem haver tantos.
Não há nada mais comum do que o desejo de ser diferente.
Há padrão até no diferente. Há coerência em ser incoerente. Coerentemente, se é que me entende.
Há tanto desejo de diferença no mundo que se fossem todos os desejos realizados não haveria no mundo dois iguais.
E se não há dois iguais, por que então utilizo palavras de outros para dizer o que penso?
Ou será que não penso?
Às vezes penso que tudo o que penso foi antes pensado e enfiado na minha cabeça para que eu pensasse que penso.

Penso, logo existo?
Existo, logo penso?
Será que penso?

E nada, nunca, não haverá o que ser dito ou pensado senão palavras e pensamentos já formulados.

Em que pensar neste mundo
quando tudo já foi pensado?
Como gritar sobre o absurdo
se o absurdo é sempre gritado?

Como reclamar a liberdade
quando ser livre é ser prisioneiro?
O que falar em minha idade
se sou apenas metade do inteiro?

Como escrever minhas idéias
se todas as idéias já foram escritas?
Como dizer as palavras certas
se as palavras certas já foram ditas?

Como tentar sair do normal?
Como poder ser menos clichê?
Se tudo é sempre igual
neste imenso Lavoisier?



"Neste mundo nada se perde ou se cria, tudo se transforma."

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

[Inspiração Sem Origem]

Certamente coisas sem explicação seriam vistas por debaixo daquela nuvem de fumaça, caso a fumaça em si não fosse tão espessa.
Era a certeza da ausência de presenças – faça isto quanto sentido possa vir a fazer – que trazia a insegurança quanto ao pretérito imperfeito do futuro mais-que-bem-passado. Como um filé ao molho madeira esfriando ao tiquetaquear do relógio de parede.
Foi um gato correndo sobre as teclas empoeiradas de um piano desafinado. Foi a mosca batendo irritante e constantemente no vidro da sala, como quem crê que se tentando com fé todos os obstáculos podem ser vencidos.
Aquela pessoa, homem ou mulher, sentada de pernas cruzadas no chão, correndo os dedos pela máquina de escrever, sem real consciência do que era impresso na folha de papel. E era o som das teclas batendo ritmicamente, em uma harmonia com a torneira pingando na pia da cozinha.
Não haveria mais sentido. Mas nunca realmente houvera. Se o teto virasse o chão em que a pessoa estava sentada, faria isso alguma diferença? Se na lareira crepitando ao seu lado direito passassem a dançar labaredas cintilantes em tons de azul e cor-de-rosa, qual seria o peso exato que isto teria sobre a relação indivíduo/mundo ao seu redor? E quem em sã consciência ousaria afirmar com real convicção que o chão não era o teto e que na lareira não dançavam labaredas cor-de-rosa?
Mas havia um som. E eram vários. Foram inúmeros sons espalhados ao redor da casa, em seu interior e no interior daquela pessoa que febrilmente escrevia, sem poder ter certeza de que as palavras impressas na folha à sua frente pertenciam a si mesmo ou a qualquer outra pessoa que pudesse estar ali, agora mesmo, em seu lugar ou em qualquer outro lugar do mundo!
Outro lugar do mundo... Sim, haveria então outro lugar no mundo que não aquele em que a pessoa estava? Sim, certamente haveria, embora aquela pessoa não pudesse afirmá-lo sem correr o risco de perjúrio. Afinal, que certezas poderia ter uma pessoa sentada no chão de pernas cruzadas escrevendo palavras que talvez não fossem nem mesmo suas?
Palavras, palavras e palavras... Talvez fosse Hamlet ou Telmah, não saberia dizer e tampouco faria diferença se soubesse. Qual seria a razão daquilo tudo, quais seriam os tipos de racionalização que aquela pessoa sentada de pernas cruzadas poderia ter?
E eram respostas vestindo máscaras de perguntas. Mas não seriam todas assim? Quem, afinal, faz perguntas sem poder visualizar qual será a resposta? Seria como dar um passo rumo a um abismo escuro, como poderia saber se encontraria a ponte?
As palavras que não eram suas... O som que era vários e que eram um só habitavam o ambiente, acompanhados pelo miado baixo do gato querendo atenção.
E foi assim que, deixando de lado a máquina de escrever e esticando as pernas, a pessoa se levantou e foi afagar o gato.

[Mudança de Ares]

Não, eu não me cansei do Desvairios. Só que acabei por me juntar à massa e entender que, apesar das vantagens do Blogger.com.br (calma, eu ainda vou pensar em uma), a versão gringa realmente é melhor. Ou, pelo menos, mais fácil e rápida.

Isto não é como se eu estivesse abandonando o Desvairios. Não, eu adoro aquele blog e ele vai continuar existindo. Também não garanto que nunca mais volte a escrever por lá, embora eu imagine que é o que vai acontecer.

Mas resolvi criar um novo nome e um novo endereço porque este aqui me dá mais liberdade para escrever sob qualquer estado de espirito (não que o Desvairios não me desse, mas é diferente). E, também, neste aqui não há erros de ortografia no título (afinal de contas eu mesma já havia dito que o correto seria "desvarios" e não "desvairios").


Portanto, sejam bem vindos ao mais novo humilde lar das minhas Inspirações Perdidas.