sábado, 6 de junho de 2009

[O Gato de Sapatilhas de Balé]

O Gato de Sapatilhas de Balé percorria afobado as ruas de Renorah. Saltando nos telhados quando lhe convinha, passando por entre as pernas dos transeuntes, correndo esbaforido por vielas vazias. Por onde, afinal, andaria sua Rainha?
O Gato de Sapatilhas de Balé não era capaz de se recordar com clareza quando e onde a vira pela última vez. Haviam saído da Torre, isto era fato, a Rainha Desvairada de Renorah a trajar nada além do próprio Gato em seu colo. E dias se haviam passado, durante os quais nem mesmo um único cidadão foi capaz de reconhecer naquela figura despida a sua própria Rainha.
O Gato não sabia muito bem quem fôra o primeiro a gritar "Mas não vai ali, nua em pêlo, a Rainha do Reino das Colossais Muralhas de Vidro?". Em pouco tempo, tão pouco que ao Gato já quase não era possível saber o que viera logo antes ou logo após, todos os cidadãos se encontravam ao redor daquela rainha desvairada e nua.
Os dias a seguir foram de extrema confusão para a mente felina do Gato de Sapatilhas de Balé. Não havia mais sossego no Reino de Renorah. O que a princípio fôra algo absolutamente fora dos padrões se tornara na mais nova corrente do Reino. Um após o outro, todos os cidadão de Renorah passaram a caminhar pelas ruas desprovidos de trajes.
E em algum momento, não sendo o Gato capaz de reconhecê-lo, a Rainha Desvairada e Nua de Renorah desaparecera, como que sugada pelo ar.

Exausto e sem fôlego, o Gato das Sapatilhas de Balé parou para respirar. Nunca mais encontraria sua Rainha, era certo. Com as mãos trêmulas, acendeu seu cachimbo de hortelã. Como diabos ela sumira sem deixar rastros, sem mais nem menos?
O primeiro tom de vermelho pintou as ruas de mármore branco de Renorah, anunciando o pôr-do-Sol. Sentado ao meio-fio, o Gato revia todos os seus passos, procurando uma brecha, por menor que fosse, que pudesse levá-lo à compreensão de onde estaria sua Rainha.
Tragando fundo o cachimbo de hortelã, o Gato das Sapatilhas de Balé perdia as esperanças. Renorah era o maior reino de sua região, quiçá de todo o mundo. Repleto de avenidas, ruas e vielas que cortavam o reino de ponta a ponta, tantos quanto há buracos em um bom queijo suíço.
Era certo que a Rainha não queria ser encontrada. Como bom conselheiro imaginário - e a consciência de que era isto o que de fato era, apenas imaginário, o invadiu de um repente -, o Gato de Sapatilhas de Balé era dotado da capacidade de encontrar a Rainha Desvairada e Nua de Renorah sob sua mais singela evocação. Mas que diabos estaria a Rainha a pensar para não chamá-lo agora, quando decerto mais precisaria dos conselhos daquele que para nada mais servia além de para aconselhá-la?
Quando o último tom de violeta tingiu as marmóreas ruas, o Gato elevou os olhos. Acima de todos os telhados daquele reino, acima até mesmo da Catedral da Igreja dos Discípulos do Reino, se estendia o Castelo de Renorah, construído do mais alvo e nobre mármore. E ali, na janela mais alta da torre mais alta do castelo que ficava milimetricamente ao centro de Renorah, o Reino das Colossais Muralhas de Vidro, o Gato teve a certeza, embora fosse iluminado apenas pelos últimos raios violetas a tingir o Reino, de ver longuíssimos cabelos vermelhos se agitando ao vento.
O Gato sorriu, guardou o cachimbo de hortelã no bolso e se levantou, esticando as pernas. "É... Tenho uma longa caminhada pela frente", suspirou, desaparecendo no mar dos cidadãos nus de Renorah.

3 comentários:

Henrique (geminilibre) disse...

O Gato sorriu, guardou o cachimbo de hortelã no bolso e se levantou, esticando as pernas. "É... Tenho uma longa caminhada pela frente"

Isso parece uma analogia interessante com talvez algum aspecto corriqueiro da vida das pessoas. O fluir, o passar transitório, o esconder-se no meio da multidão.
E naõ só isso, mas também: será que a rainha de Renorah tem cabelos vermelhos por que a escritora também os tem? Coincidências? Parece um conteúdo levemente autobiográfico.

Mas relaxe, aposto que esse tipo de biografia deve ocorrer na vida de qualquer autor a todo instante: afinal, é impossível escrever 100% fantasia - aposto que até mesmo Tolkien ( praticamente pai da fantasia épica anglo saxônica) pode ter abordado alguma característica intrínseca e humana que ele pode ter percebido andando de por aí...

Além disso, por que a Rainha está nua e sumiu? Você não disse... Disse apenas que ela era apenas desvairada, mas loucura não justifica nudez. E de que tipo de nudez falamos: material ou espiritual?^^

Menina, voc~e acabou de criar um prato cheito para a filosofia... [:)]

E a experiência mental do "Gato de Schroeder" que se cuide... hehehehhe

Henrique disse...

Perdão:

Na penúltima frase é:

"... você acabou de criar um prato cheio..."

- Desculpas pelos erros de digitação: é o horário...

Lucia Camargo disse...

Adorei imaginar o Gato, a Rainha o reino...Viajei!! Vou seguir esse também.