sexta-feira, 7 de maio de 2010

[Disritmia]

Postado originalmente em 15 de agosto de 2008


Quisera eu ser capaz de traduzir em um conto ponto por ponto da história que me vem à mente.
É um homem. Não importa nome, idade ou tempo. Sei apenas que é casado. Casado é apenas por ser. Porque não há coisa mais imposta pela sociedade do que o casamento.
E há uma mulher. Não a casada com o já dito homem. Outra mulher, uma daquelas que nos vêm à mente quando pensamos em “mulher” no sentido completo. É bela, elegante, inteligente, independente. Veste-se de vermelho, impõe-se e – por que não? – fuma.
É esta mulher o completo oposto da casada. Boa dona-de-casa, mãe e esposa são as últimas coisas que ela sonha em ser. E, por isto, é julgada.
Há ainda a dona-de-casa, embora pareça que pouco tenha-se a dizer dela. Não que seja menos do que a outra mulher desta história, apenas não possuiu a ousadia da primeira. Pode ser tão ou até mais inteligente do que a mulher que fuma, mas jamais se permitiu mostrar ou escolher. E por isto não pode ser julgada.
E eis que o já previsto acontece. O homem fica de joelhos pela mulher que fuma.
Que seja bem dito, não se trata esta de nenhuma destruidora de casamentos ou algo do tipo. Ela o atrai naturalmente, sem ter a intenção. E por ele também se atrai. E se envolvem, e se apaixonam, e se amam. Nada poderia ser mais natural.
Há apenas uma cena que me vem à cabeça, e talvez a este ponto seja necessário dizer que o citado homem é um famoso compositor que há tempos passava pela mais terrível crise criativa de sua vida.
A mulher que fuma o inebria. O hipnotiza, o maravilha. Ela é a mulher definitiva, a mulher ideal de seus sonhos de poeta. Mas há ainda a mulher casada, aquela a quem ele recorre após uma noite entregue ao spleen, à bebedeira, aos desvarios. É a mulher casada que vem a ele com uma banheira de água morna em que ele pode curar sua ressaca. É ela a mãe de seu ou seus filhos.
A mulher que fuma não o cobra. Sabe que é por ele amada, sabe de seus problemas e suas necessidades. Compreende como ninguém a mulher casada e não a julga por assim ser. Há sempre um preço a pagar, e às vezes este preço pode ser caro demais.
Mas como já foi dito, pode bem ser que a mulher casada seja ainda mais inteligente do que a mulher que fuma. E nada passa batido aos olhos de uma mulher que cura a ressaca de seu marido. Ela sabe da mulher que fuma, e chora quieta à noite enquanto espera que o marido retorne.
São dois homens. Há o pai-marido, sisudo, semblante sério, sempre ocupado em seus papéis, escrevendo na solidão de seu escritório. E há o homem-apaixonado, o homem que ama, que ri, que chora e que à mulher que fuma mostra seus escritos e nunca descarta sua opinião.
Agora sim, a cena que me vem à cabeça. Uma pequena apresentação deste famoso e isolado compositor, uma audiência para que ele mostre seus finalmente novos trabalhos. É com este dinheiro que ele sustenta mulher e filhos.
E há na platéia as duas mulheres. A esposa-mãe, quieta e triste em seu silêncio. A mulher que fuma, discreta em sua presença, sentada ao fundo embora que ainda com um belo vestido vermelho.
E o homem então se apresenta. Uma única canção. Triste, apaixonada, dolorosa. Há em seus versos a presença intrínseca e indisfarçável das duas mulheres ali presentes.
Então, pela primeira vez, os dois pares de olhos femininos, úmidos e melancólicos, se encontram. Assim permanecem por minutos que parecem horas. As duas então piscam lentamente, cumprimentam-se com um aceno de cabeças e separam o olhar com dois discretos sorrisos nas faces.

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