sexta-feira, 7 de maio de 2010

[O Ceguinho sem Bengala - parte II]

Postado originalmente em 16 de setembro de 2007

Foi tanto tempo sem andar no Jacira que eu poderia jurar que jamais encontraria novamente o meu ceguinho sem bengala.
Mas é o que dizem: se Maomé não vai à montanha...
E a montanha veio a Maomé.
Foi no ponto, desta vez.
Como sempre, distraída e naufragada em pensamentos bizarros e longínquos, eu esperava um integrante da Família Real. Se era Dom Pedro II ou Princesa Isabel, tanto fazia.
E lá estava, olhando ao longe os letreiros luminosos.
Mas meu foco tentava se desviar. Mais para perto, mais para perto, ele dizia. Cedi. E ali estava ele.
Na minha frente, como se houvesse surgido do nada, o meu ceguinho sem bengala.
(A verdade é que ele usa bengala, mas que diferença isso faz?)
Estava parado, esperando por algo que ele jamais poderia ver. "Que ônibus é esse? Que ônibus é esse?"
E ninguém - acreditem - ninguém respondeu.
Minha chance, pensei. É agora. "Itaim."
"Ah, este não serve." Pois não. Vai, fala mais alguma coisa. "Qual o senhor está esperando?" Aquela voz gostosa que me encantara tanto: "Bandeira, Butantã, Pinheiros..."
Certo. Agora vai, aproveita a chance! Pergunta o nome, pergunta o nome!
"Este que parou é um Bandeira", para a minha tristeza. "Não, este não. É dos grandões e tá vazio."
Sim, era dos "grandões". E sim, estava vazio! A incrível magia da cegueira... Vá saber como?
As pessoas no ponto: "Ah, esse sol na cara é um saco!"
O meu ceguinho, entre um sorriso enigmático: "Eu posso olhar para o sol, você não podem."
É tão... Alguém entende?
Vai, fala alguma coisa. Diz, diz que adora ouvi-lo cantar no Jacira. Vai, pega essas moedas no seu bolso e dá para ele.
"Vem vindo um com o nome apagado." E meu ceguinho: "Esse não. É o Largo do São Franscisco, pára no outro ponto."
Abismada. Assustada. Como?
"Não ouviu o barulho dele?", como se percebesse meu espanto.
Não, não ouvi o barulho dele. Eu posso ver. Quem vê não se preocupa muito com o barulho.
Vivemos no mesmo mundo. É o mesmo planeta, a mesma cidade. É o mesmo ponto de ônibus. É o mesmo Jacira.
Vivemos em mundos completamente diferentes. Eu estou num mundo de luzes, de cores e de formas. Meu ceguinho, num mundo de sons, barulhos e ruídos.
Eu quero entender, quero saber como é o mundo que ele percebe. Vai, pergunta. Começa um assunto filosófico sobre as percepções auditivas que você não percebe!
Ah, claro... Começa um assunto filosófico sobre as percepções auditivas que só ele percebe...
"Um Butantã." Ele sorri. Suas pústulas cobrem seu corpo inteiro, mas eu simplesmente não as percebo.
"Esse sim! Cadê a porta de trás?"
E o guio. A porta fecha e o ônibus vai, levando o meu ceguinho sem bengala.
Sorrio ao imaginar as pessoas que vão ouvi-lo cantar. Invejo-as.
Lá vem a minha Princesa. Vamos lá.


"Existem pessoas que passam dois minutos na nossa vida e nos marcam para sempre."

por Mim



P.S.: Quis me matar quando cheguei onde queria e descobri que o Butantã também ia até lá. 

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