sexta-feira, 7 de maio de 2010

[O cego sem bengala]

Postado originalmente em 21 de julho de 2007

Era no Jacira que ela o viu da primeira vez. E da segunda. E da terceira. Era sempre no Jacira que se encontravam. Aquele encontro sutil, delicado.
Da primeira vez ela teve um sobressalto ao vê-lo. Tinha pústulas na cabeça e por todo o corpo visível. E era cego. Um cego sem bengala. Mas cego.
No começo ela não deu atenção. Tantos e tantos entravam no Jacira para pedir. Era a miséria da cidade grande, coisa que ela tinha aprendido a fingir não ver. Como qualquer outra pessoa no Jacira.
Ela desviou o olhar, fingindo interesse nos carros passando lá fora. O cego falava, e a cada palavra ia ficando mais difícil ignorar sua presença. Mas o golpe final veio quando ele começou a cantar.
Era um canto lento, alto, bonito, triste. Sem perceber, ela passou a observá-lo atentamente. Sua voz ecoava nas paredes de vidro do Jacira, os passsageiros seguindo sua rotina de ignorar a miséria.
O mundo do cego sem bengala se abriu ao redor dela. E ela ficou parada, boquiaberta, hipnotizada. Brilhava com uma luz que não era real. Era uma luz mais brilhante do que o sol. E as cores... Eram cores que nem em seus sonhos mais alucinados ela poderia ter imaginado. E o canto...
O cego sem bengala olhava para ela. Não a via, era certo, mas parecia saber. E continuava seu canto lamurioso, lento, delicioso. Falava de amor, de Deus, de felicidade. E era isso, era exatamente isso que ela sentia: a mais absoluta felicidade. Uma absoluta e triste felicidade.
Ele sorria. Era um cego sem bengala que sorria. Tinha pústulas pelo corpo, mas sorria.
Quando a hora de descer do Jacira chegou, ela precisou se forçar a sair.
Mas outros encontros virão, Cego sem Bengala. E sempre no Jacira.

por Mim, apenas por Mim.

Obs.: Antes todos tivessem um Cego sem Bengala...

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